"À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo"

Tag: vida cotidiana

Nossa própria distopia

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Sentei pra escrever um texto e vi meu último, que foi mais um apelo desesperado do que um artigo. De qualquer maneira, não deu e vivemos numa distopia digna de um filme do Aronofsky. Mas isso é tópico pra outro momento.

O que eu quero falar é sobre a nossa própria distopia; aquela que a gente cria pra gente mesmo diariamente e nem se dá conta.

Eu faço terapia há algum tempo já e uma das minhas queixas recorrentes é sobre minha dificuldade de me engajar em coisas além do meu trabalho normal diário; coisas que sempre me alimentaram mental e espiritualmente e me ajudaram a diminuir um pouco a pressão do dia-a-dia.

E a nossa muleta preferida é o tempo. “Não tenho tempo”, “não tive tempo”, “quando vou ter tempo pra isso”, tempo, tempo, tempo… E é justificável, vai. Vivemos em uma era em que somos sufocados diariamente por um excesso de informação e obrigações as quais achamos que devemos absorver e fazer algo com tudo. Só que, pra mim, esse é só um ponto (e não tão justificável).

Na minha opinião, o pior que criamos é a tal da distopia que comentei um pouco acima. Voltando ao meu exemplo pessoal: eu sempre escrevi razoavelmente bastante e, de uns tempos pra cá, praticamente parei. E por que parei? Bem, tempo pode ser um motivos, mas, a definição de expectativas num nível absurdamente alto e, em certa medida, inalcançável é o pior. Essa é a distopia, um mundo futuro criado à partir de um medo irracional de falhar.

Antes mesmo de nos propormos a fazer qualquer coisa, começamos a nos questionar se somos capazes, se temos o que é necessário, se vamos conseguir, se é relevante, se os outros vão gostar etc. Mais do que isso: é já ter definido na sua cabeça que não tem a menor condição (e razão) de fazer o que você quer e, então, pra que se dar ao trabalho de começar. Estamos sempre esperando demais de nós mesmos.

Por isso que expressões como “se você quer fazer algo é só começar” têm sua validade, mas não cobrem o cenário macro. Não é só preguiça. Não é só procrastinação. É auto-inveja, auto-estima baixa, medo puro, traumas, enfim, um conjunto de fatores que se nós mesmos não conseguirmos elencar e ter ciência deles, não sairemos nunca do lugar.

Eu ainda não achei uma solução pra mim em quase 5 anos de terapia e uns 2 de consciência desses movimentos. Eu tenho dificuldade de voltar a escrever frequentemente (notem o tempo entre um texto e outro), estou sempre pronto a providenciar desculpas pra não ler meus livros e tenho frases prontas pra não sentar e passar horas tocando guitarra

Esse texto é mais uma tentativa de desmontar a distopia por dentro, uma tentativa de contar pra outros que isso tudo existe e que é preciso admitir pra seguir.

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A sonhadora ansiedade de cada um

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Ser ansioso é viver num mundo muito peculiar; é viver dialogando com a eterna fantasia do que ainda não aconteceu e, talvez, nunca, de fato, aconteça. Ou, ainda, querer que o tempo possa ser dobrado ao seu bem entender e que as coisas se movimentem e caminhem quando você bem entende. É ser um pouco egoísta e prepotente, afinal, até o tempo você quer controlar…

É ser um pouco frágil, num certo sentido, também. É não querer aceitar que algumas coisas não podem ser controladas e que as coisas acontecem quando elas têm que acontecer e tudo o que você pode fazer é esperar. É se dar um pouco conta que o centro das coisas não é você – você é uma parte bem pequena dum quebra-cabeças bem grande.

O engraçado é que, em geral, quem é ansioso pras coisas da vida é, também, sonhador – e quem não gosta de sonhar? Parece que essas duas características andam bem juntinhas, ou seja: ao mesmo tempo que você gasta energia desesperado pelo que pode acontecer e/ou porque ainda não aconteceu, você também tem a capacidade de arquitetar aquilo que, pra você, é o mundo ideal que você quer habitar e ser feliz.

Claro que tudo que é exagerado pode ser mais doloroso do que prazeroso; sentir ansiedade demais ou sonhar demais pode nos desconectar além da conta da realidade, do palpável… um pouco que nem aquela cena do filme A Origem, em que a personagem da Marion Cotillard já não sabe mais se ela está sonhando ou se esta vivendo o real (spoiler neste link, se você não viu o filme).

Mas isso, amigos, é a minha modesta opinião, viu? Discordem à vontade, mas eu acredito, num certo sentido, que não se é possível sonhar sem ser ansioso.

E eu sou ansioso.

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Um conto moderno

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Houve momentos em que achei que eu seria um bom contista. Escrevi uma coisa ou outra, mas, como sempre, acabei largando por algum motivo besta.

Tento novamente – que dure mais, agora!

Agradeço de antemão os que lerem e derem sua opinião!

Abs

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Um conto moderno, por Alexandre Ramos Flávio

 

Ele, um cara de meia-idade, andava acelerado em direção ao metrô. Olhava e não via nada em volta, só a quantidade ensurdecedora de carros e pessoas falando alto sobre coisas com as quais ele não se importava. A estação não estava tão longe, mas havia uma tempestade se formando e ele já estava mais do que desconfortável com suas próprias tormentas: algumas contas em atraso, muito tempo sozinho, decepção com suas escolhas políticas… a lista era longa.

Entra na estação, passa a catraca como quem entra num estádio em dia de final e consegue pegar o metrô parado naquela estação. Por uma dessas poucas bem-feitorias do destino, vazio. Encontra um lugar vago – no canto, como gostava – e senta. Coloca os fones, liga a música e pega um livro pra ler. O trajeto é longo e ele já se prepara pra tentar esquecer da sua vida mergulhando no papel.

Não lê uma linha. Quando está se ajustando na cadeira, entra uma moça – é o suficiente pra que ele não consiga mais fazer outra coisa a não ser observá-la. Vinte e tantos anos, séria e segura de si; um olhar extremamente profundo e marcante que o faz esquecer de tudo, da sua vida e do seu livro, afinal, o que ele via naquele olhar era bem mais profundo. Os cabelos levemente ondulados balançavam junto aos movimentos do vagão e ele sentia-se balançar por completo, internamente. Naquele instante, as tormentas todas passaram – só havia brisa e paz.

Em determinado momento, ela percebeu que estava sendo olhada e retribuiu, ainda que timidamente, o olhar. Por alguns segundos eles estiveram no mesmo lugar, na mesmo compasso dessa sinfonia de sons moderna, que teve seu movimento interrompido quando um estranho falou: “próxima estação, Luz”.

Ela se levantou, acenou com a cabeça e desceu.

Ele sorriu e abriu seu livro na página 1.

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